Pedro Ponce de León

Um grito de silêncio: um breve passeio pela história do surdo

Língua de sinais reconhecida, inclusão, respeito, empatia, direitos de comunicação assegurados em Lei: todas essas conquistas ainda são muito recentes na história do surdo.

De excluídos sociais a criaturas desprovidas da eternidade da alma, os surdos começaram a ser reconhecidos como grupo social há pouco mais de um século.

Ainda que conceituado como mediador entre deuses e faraós, no Egito antigo, o surdo era visto como destoante da normalidade, com viés de veneração.

Contudo, a percepção dos oralistas quanto ao surdo não parece ter sido tão “generosa” em outros tempos e regiões: na China antiga, eram sacrificados; na Grécia antiga não eram considerados humanos, pois, considerava-se, desprovidos de linguagem, não eram dotados de pensamento; na Roma antiga, o surdo era classificado como uma especificidade de deficiente mental.

Na Idade Média, Igreja os perseguia. Os surdos, até o século XII, não podiam se casar. Suas almas – quando cogitavam a sua existência – não seriam imortais, pois, em vida, não podiam pronunciar os sacramentos de salvação.

Somente no Século XVI a situação do surdo começa a mudar. É importante frisar que é um começo, extremamente restrito e elitista. Nessa época, preocupadas com a destinação de suas heranças, as famílias nobres começaram a voltar sua atenção para a educação de seus filhos surdos. A questão era muito mais financeira do que altruísta.

Pedro Ponce de León, durante o Século XVI, foi considerado o primeiro professor de surdos da história. Seu foco era o desenvolvimento da oralização e defendia que o surdo era capaz de desenvolver a aprendizagem.

No século seguinte, em 1620, Juan Pablo Bonet, padre espanhol, pioneiro na educação de surdos, publicou a obra “Redução das Letras e Arte de Ensinar a Falar os Mudos”, o primeiro livro sobre a educação de surdos, que se tornou uma referência mundial.  Seu foco se dividia entre a oralidade, os sinais e o alfabeto manual

Charles-Michel de l’Épée, o “Pai dos surdos”, no Século XVIII, proveu o primeiro empoderamento da língua de sinais. Foi o fundador do primeiro instituto de educação de surdos do mundo, em 1760. Nesse momento, a oralização sai do foco e os surdos passam a ter uma língua. l’Épée foi um dos primeiros inventores dos sinais metódicos.

No início do Século XIX, mais precisamente em 1817, Thomas Gallaudet e Laurent Clerc, com base na escola francesa, fundam, nos Estados Unidos da América a Hartford School, a primeira escola de surdos norte-americana. Da adaptação da Língua Inglesa de Sinais, nasce a ASL, American Sign Language, Língua de Sinais Americana.

Inaugurada em 1857 pelo filho de Thomas Gallaudet, Edward Gallaudet, a Universidade Gallaudet foi a primeira instituição de ensino superior a desenvolver seus  programas de aprendizado voltados para a população surda, utilizando a ASL.

Aqui no Brasil, mais precisamente no Rio de Janeiro, ainda em 1857, D. Pedro II convida o educador francês Hernest Huet, surdo, ex-aluno surdo do Instituto de Paris, e funda o Instituto Imperial de Surdos-Mudos, um internato inspirado pela Língua Francesa de Sinais, que veio a se tornar o INES, Instituto Nacional de Educação de Surdos. Mais uma vez, a inspiração parece não ter se originado no altruísmo: D. Pedro II era avô de um menino surdo.

Pouco tempo depois, entre 6 e 11 de setembro de 1880, um retrocesso, daqueles que só a história da humanidade é capaz de produzir, permeou a dinâmica de autonomia que começara a se estabelecer para a comunidade surda: o Congresso de Milão, na Itália.

Nesse Congresso, a oralização foi disposta como único método de ensino aos surdos, afastando a Língua de Sinais como padrão de comunicação e desenvolvimento individual e coletivo. Professores surdos e de Língua de Sinais foram afastados de seus postos docentes.

Dispunham suas resoluções do Congresso de Milão que “dada a superioridade incontestável da fala sobre os sinais para reintegrar os surdos-mudos na vida social e para dar-lhes maior facilidade de linguagem, […] (este Congresso) declara que o método de articulação deve ter preferência sobre o de sinais na instrução e educação dos Surdos e Mudos” e que “o método oral puro deve ser preferido porque o uso simultâneo de sinais e fala tem a desvantagem de prejudicar a fala, a leitura oro-facial e a precisão de ideias”.

Sobre o surdo recaía a incumbência de falar, de ler lábios, de suprimir os gestos, artificializando comportamentos ouvintes e desarticulando as comunidades surdas então constituídas.

Contudo, no decorrer do Século XX, os surdos retomaram a luta pela reconfiguração social de seus direitos básicos.

No Brasil, somente no Século XXI a legislação oficializou a Língua Brasileira de Sinais como segunda língua oficial do país. Trata-se da Lei 10.436 de 2002 (https://is.gd/91NJ1l) que reconhece “como meio legal de comunicação e expressão a Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS, e outros recursos de expressão a ela associados”, definindo-a como “a forma de comunicação e expressão, em que o sistema linguístico de natureza visual-motora, com estrutura gramatical própria, constituem um sistema linguístico de transmissão de ideias e fatos, oriundos de comunidades de pessoas surdas do Brasil”.

A Lei 10.436 de 2002 ainda garante, “por parte do poder público em geral e empresas concessionárias de serviços públicos, formas institucionalizadas de apoiar o uso e difusão da Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS, como meio de comunicação objetiva e de utilização corrente das comunidades surdas do Brasil” e determina que “as instituições públicas e empresas concessionárias de serviços públicos de assistência à saúde devem garantir atendimento e tratamento adequado aos portadores de deficiência auditiva, de acordo com as normas legais em vigor”.

No que diz respeito à Educação a Lei 10.436 de 2002 institui que o “sistema educacional federal e os sistemas educacionais estaduais, municipais e do Distrito Federal devem garantir a inclusão nos cursos de formação de Educação Especial, de Fonoaudiologia e de Magistério, em seus níveis médio e superior, do ensino da Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS, como parte integrante dos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN, conforme legislação vigente”, enfatizando que a “Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS, não poderá substituir a modalidade escrita da língua portuguesa”.

Além da referida Lei, cabe citar o – e recomendar a leitura do – Decreto  5.626 de 2005 (https://is.gd/idIH3u), que regulamenta a Lei no 10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais – Libras.

As línguas de sinais proporcionam não somente a autonomia do surdo, mas a abrangência democrática e inclusiva de um grupo social tão essencial quanto qualquer outro para o aprimoramento da sociedade.

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Texto de autoria de Thiago Vieira,
Comunicólogo, psicopedagogo, psicanalista e especialista em sexualidade humana

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VIEIRA, Thiago. Título da publicação. Publicado em “Pedagogia Modular”. Disponível em https://pedagogiamodular.wordpress.com. Acesso em DD/MM/AAAA.